quinta-feira, 30 de novembro de 2006

Bons velhos tempos

Não sou saudosista, recuso olhar com nostalgia para os anos loucos da juventude. O presente trouxe prazeres que nunca tinha imaginado: os planos em comum, inventar um novo lar, o sorriso dos filhos... Sinto falta apenas da liberdade, aquela enorme liberdade própria da inconsequência, própria de quem ainda não tem que se ralar com o dia seguinte. Sinto falta de fazer aquilo que bem me apetece, sem ligar a nada, apenas porque apetece.
Será que podemos ir trabalhar de cabelo rapado ou com uma crista de gel?

Foi bom, foi muito bom

Passámos 18 anos sem nos ver-mos e agora trocamos emails quase diariamente, numa euforia adolescente. No éter informático recorto e colo algumas frases soltas:
Foi o acontecimento mais marcante e surpreendente deste ano.
Adorei estar convosco a reviver e recordar tempos passados.
Foi bom, foi muito bom.
Mesmo descontando eventuais excessos de linguagem, o que sobra parece excessivo, próximo da loucura colectiva.
Serão as nossas vidas tão vazias que basta um jantar de amigos para enchê-las? Ou o que foi marcante não foi o jantar em si mas o retomar de amizades suspensas no tempo?

quarta-feira, 29 de novembro de 2006

Estado de alma

Um amigo no café, com um sorriso límpido, transparente, próprio de quem tem o mundo e todo o tempo do mundo pela frente. Uma fotografia de um estado de alma, que transborda de alegria juvenil. Onde é que está esse sorriso agora?

terça-feira, 28 de novembro de 2006

Má memória

Passou-me pela mão uma fotografia de um corredor da escola, vazio e escuro. Por qualquer motivo, a foto pareceu-me repulsiva; uma impressão ligeira, mas com sabor a náusea. Escondi-a numa gaveta da secretária, longe dos olhos mas à vista do pensamento.
Passaram-se alguns dias. Não racionalizo, mas sem querer iracionalizo. Uma lembrança assoma finalmente à superfície da memória, como um destroço que estivesse afundado. Revivo a experiência como se se passasse agora: cheguei mais atrasado do que devia e vou levar na cabeça. Ou então: fui expulso e já levei na cabeça. Tiro a foto da gaveta e olho de novo para ela: não há motivo para medos, já acabei a escola, não me podem chumbar por faltas.

segunda-feira, 27 de novembro de 2006

TEPR/TD

TEPR/TD. Podia ser o nome de um partido revolucionário pós 25 de Abril, que nessa altura ainda abundavam, mas não. Eram as abreviaturas das disciplinas de "Técnicas de Expressão e Práticas Reprodutórias" e de "Teoria do Design"; as disciplinas que nos davam um "status" especial e que faziam da nossa turma a "turma de artes".
Não era um partido, mas para nós tinha um "cheirinho" de revolucionário. Tínhamos mais liberdade do que em qualquer outra disciplina; podíamos nos levantar, passear pela sala e conversar com os colegas. Os professores tinham um trato informal e até se juntavam a nós nos frequentes jantares de turma. As salas eram grandes e tinham um ar desarrumado, que quebrava a ideia de massificação do ensino. No papel fazíamos o que quiséssemos; dávamos asas à imaginação e ao sonho de sermos artistas.

quinta-feira, 23 de novembro de 2006

O recreio do Dona Leonor

Nunca andei noutra escola, não conheço outros recreios, mas o pátio coberto do Dona Leonor era bestial. Havia dois pátios, mas toda a gente insistia em ir só para um, o que tinha o bar e a papelaria. No Inverno, nos intervalos, ficava à cunha. Tinha vidros partidos e em dias de chuva apanhávamos uma molha. Quando não chovia rapávamos frio. Estranhamente, retenho sobretudo a ideia que era um sítio acolhedor e onde sabia bem estar.

O meu melhor amigo

Era o meu melhor amigo e agora já não sei o que é feito dele. Com aquela idade, ser o melhor amigo era como uma promessa: “é meu amigo para sempre”. Partilhámos as primeiras cervejas, as primeiras noitadas, viagens e depressões. Tínhamos muito em comum e hoje a única coisa que temos em comum é o passado. Sou a favor da eutanásia das amizades. Quando é chegado o momento deve-se deixá-la ir, sem sobressaltos, sem remorsos, ao invés de prolongá-la artificialmente. Apesar disso tenho saudades desse amigo que durante alguns anos foi o meu amigo para sempre.
(Soube há pouco que ele está na Austrália, que é física e metaforicamente do outro lado do mundo.)

terça-feira, 21 de novembro de 2006

Estás na mesma!

Persisto na minha inquietação, na estranheza destas palavras: O que é feito de ti? Tento dissecar a questão. Não é só esta frase isolada que me perturba, é o conjunto: Estás na mesma pá! O que é que isto quer dizer? Ninguém está na mesma! Nem que quisesse! Passou-se metade das nossas vidas e isso não pode ser indiferente. Como é que é possível rever alguém 18 anos depois e dizer estás na mesma. Claro que não estou. Cresci, casei, tive filhos, tive desilusões e alegrias, mudei, todos mudámos. Devia dizer: reconheço-te, mas já não te conheço; quem és tu agora?

Última foto.

Um jantar na Garagem dos Anjos, uma Canon mais velha do que eu destruída, e a companhia dos amigos no Apeadeiro do Areeiro. Foi a última foto da máquina. A vida continua. Comprei a minha Nikon e recomecei.

Hoje as duas máquinas estão num armário, sem verem luz há alguns anos, uma inutilizada e outra sem uso. É um contracenso irónico. Um destes dias resgato-as.

Cuidado com as vacas!

O insólito de um sinal de "cuidado com as vacas" na Av. Estados Unidos da América. Mais tarde o mesmo sinal, no recreio do Dona Leonor. Numa turma de artes havia que fazer juz ao surrealismo e dadaísmo com que nos martelavam nas aulas de História de Arte e de Teoria do Design.

Da teoria à prática foi só preciso a casualidade de dar com a placa e pedi-la emprestada. Misto de arte urbana, manifesto anti-urbe e irreverência, fica para a posteridade sobretudo a curtição.

segunda-feira, 20 de novembro de 2006

Fragmentos do passado

Na minha arrecadação tenho um cemitério de coisas inúteis: móveis velhos, objectos estragados à espera de um arranjo impossível, caixas de cartão de que já não sei o conteúdo. No entanto, no meio da desordem própria de arrecadação, há uma caixa que não costumo abrir mas sei onde está e aquilo que tem dentro: fragmentos do passado. É eventualmente a caixa mais inútil de todas, mas sou demasiado preso a mim próprio para me livrar dela.

Vou até ela e tiro de lá recordações, agarradas aos fragmentos. Uma capa de caderno, uma BD caseira de gosto duvidoso, um cartão de estudante, uma folha de ponto, uma agenda velha com nomes de pessoas perdidas… Elementos soltos, de tempos diferentes, misturados de forma indiferente.
Vasculho um pouco e tento descobrir algum nexo, tento encontrar um determinado tempo e dar-lhe ordem. Com meia dúzia de papéis junto um ano de vida. Já está. Tiro uma foto. Mais tarde vou guardá-la na caixa.

sábado, 18 de novembro de 2006

O que é feito de ti?

Jantar de turma, 18 anos depois. Perguntas soltas e céleres.

- Então pá! Há quanto tempo! Estás na mesma! O que é feito de ti?

Retenho hoje, na ressaca, esta última frase: o que é feito de ti. Respostas também céleres.

- Faço isto ou aquilo, moro não sei onde, casei, tive n filhos, e tu?

E com isso já está, 18 anos resumidos nuns minutos. Passamos a outro colega e repetimos. Apetecia-me antes responder:

- Tanta coisa. Tens tempo? Anda até lá a casa, fazemos um serão à conversa, ao pé da lareira, e pomos tudo em dia. Quando o sol nascer vamos até à varanda, assistir o espectáculo maravilhoso dum novo dia e ficamos calados a digerir a vertigem desses 18 anos bem contados, com muitos fios puxados à meada da memória, uns comuns, do tempo da secundária, outros soltos, já depois.

Claro que a lareira e a varanda não precisavam de lá estar, servem só para dar o tom quente do calor humano, mas o tempo, esse é que falta. E também haveria outras respostas possíveis, talvez menos objectivas, talvez mais sinceras.

- O que é feito de mim? Sei lá. Entre aquilo que queria ser e aquilo que fui sendo e sou agora não há nada em comum. Entre as utopias descontraídas da secundária e a correria do quotidiano perdi qualquer coisa. Não sei quê nem onde. Parece que sou o mesmo mas já não há o mesmo brilho nos olhos. Não há nada que valha de facto a pena contar.

Mas a pergunta persiste perturbadora: o que é feito de ti. Mas que disparate é este? Que pergunta mais fútil! Vamos ao essencial:

- És feliz?

Assim de chofre quase parece uma acusação. Mas podia ser mais cruel:

- Estás mais ou menos no meio da tua vida. Olha para trás, olha para onde estás agora e diz-me: era isto que querias?

Penso outra vez naquelas seis palavras: o que é feito de ti. Porque é que elas me perseguem? Porque é que elas me perturbam? Não é pela resposta fácil que se dá. É pelas perguntas difíceis que tenho que fazer a mim próprio para saber responder.