segunda-feira, 27 de julho de 2009

O meu melhor amigo (II)

Em todas as fases da vida temos um “o melhor amigo”, que é para sempre, e que na maior parte das vezes não nos acompanha na fase seguinte da vida. Na minha primeira infância também foi assim. Em mensagens trocadas com o passado, noutro continente, obtive um endereço de email através do qual reencontrei (virtualmente) o melhor amigo de então. Mandou-me uma foto: ele, a sua irmã e, à direita, um rapaz que não reconheci.
Tudo na foto me pareceu familiar: as roupas, as cores, a porta, as grades... só o rapaz à direita me pareceu estranho. Em nova mensagem confirmei o que era óbvio: o rapaz estranho sou eu.

segunda-feira, 20 de julho de 2009

Afinal existi antes dos 10 anos

Recebo um email. Alguém, cujo nome não reconheço de imediato, pergunta se sou seu amigo de infância ou outra pessoa qualquer com o mesmo nome. (Afinal o meu nome nada tem de invulgar.) A mensagem continha alguns fragmentos do passado, onde me reconheço.
Como muitos portugueses, nasci e vivi nas ex-colónias. Nos tempos conturbados do pós-25 de Abril fomos para o Brasil, regressando a Portugal na década de 80. Acho que cresci sabendo que parte da minha infância estava truncada: amigos perdidos, terras distantes, 3 países, 2 continentes. Lembro-me de algumas coisas dessa altura mas é como se só a partir dos 10 anos o passado tivesse existência real. Um passado que não pode ser revisitado faz com que a memória possa ser apenas imaginação.
Respondo ao email: sou eu! Mando-lhe uma das poucas fotos que tenho dessa época: a formatura da pré-primária.
Nas mensagens seguintes recebo fotos actuais dos locais da minha infância: a escola, o conservatório, a catequese… Está tudo na mesma, volvidos 30 anos. De repente sinto que existi antes dos 10 anos.

quinta-feira, 10 de maio de 2007

Última hora!

Há dias fui surpreendido com uma notícia de última hora, que fez a abertura de alguns telejornais: Astrónomos observam a maior explosão estrelar do universo. O cataclismo que deu origem à maior Super Nova de sempre teve lugar à distância segura de 240 milhões de anos-luz, mais coisa menos coisa.
Tentando ver para além do óbvio – a enormidade da explosão – o que eu achei verdadeiramente interessante, foi algo que ninguém noticiou: o aconteciemnto de última hora foi dado em diferido. Uma das coisas que aprendi nas aulas de Física do Liceu, é que nestas coisas da Astronomia há uma certa promiscuidade entre espaço e tempo. No caso particular, a imagem da explosão, mesmo viajando à velocidade da luz, levou 240 milhões de anos a cá chegar. O mínimo que se pode dizer é que a notícia peca por falta de actualidade.
Reescrevo mentalmente as parangonas dos jornais: Há 240 milhões de ano houve uma grande explosão, e acrescento por baixo, em letras menores, O que aconteceu entretanto ainda não sabemos.
De repente fico com a sensação que afinal não saímos do Rainha assim há tanto tempo…

segunda-feira, 7 de maio de 2007

Antigo aluno

Atravesso os corredores do Rainha, em direcção à saída. Espreito pelas portas entreabertas para ver como são as salas dezasseis anos depois. Tudo está trocado. Onde era a reprografia está a associação de estudantes; as salas de trabalhos manuais acolhem agora a informática, num óbvio sinal do tempo.
Sinto-me um intruso, um ladrão que por curiosidade bisbilhota as gavetas da casa que assalta. Estava absorto no meu voyeurismo, quando sou surpreendido com a frase os antigos alunos também podem entrar.
Levei alguns segundos até compreender a situação. Quem me surpreendeu foi uma professora, que apercebendo-se da situação me convidou a entrar. (Terei um rótulo na testa dizendo antigo aluno?) Sinto-me apanhado e declino o convite apressadamente, prosseguindo pelo corredor. A frase no entanto permanece na minha cabeça: antigo aluno. Pensei que me tinham chamado ao Liceu, para contar as peripécias de outros tempos, na qualidade de ex-aluno, mas afinal sou antigo aluno. Faz toda a diferença. Ex é aquele que foi mas já não é; é uma mudança de estado no tempo, mas num tempo não quantificado; é intemporal. Mas antigo é outra coisa, não fazendo uma quantificação precisa dá-nos uma ordem de grandeza, é um ex já com alguns anos em cima. A frase de circunstância, por definição amável, esbofeteia-me com o hiato temporal implícito. De repente apercebo-me que aquele local já não me pertence, que apenas sou dono da minha memória do local, ou, pior ainda, que sou refém da minha memória do local.

quinta-feira, 3 de maio de 2007

Ironia

A vida tem destas ironias. Uma mensagem lançada ao mar numa garrafa, que no capricho das ondas volta ao remetente sem nunca se ter afastado dos seus pés. Um fio que queremos cortar mas que resiste teimosamente, vincando as mãos nuas. Um filho pródigo que regressa a casa.
O meu último dia de Liceu foi num Setembro demasiado luminoso, para fazer um exame de 2ª época. Faltava concluir uma única disciplina para ter o secundário terminado; fartava transpor o derradeiro obstáculo para poder ir para a universidade e virar mais uma página da vida. Sentia plenamente a solenidade do momento, como um ginasta que quer a medalha de ouro: se falhar, perde a medalha e um ano de vida.
Por estranho que pareça, o exame foi feito no ginásio. Para os professores havia a conveniência de juntarem numa só sala todos os alunos, a uma distância segura uns dos outros, para evitar os cabulanços. Para os alunos havia o stress adicional de estarmos fora do nosso espaço habitual, numa sala sem aconchego, sentido uma pressão inquisitória sobre nós. O meu pensamento tinha a simplicidade do instinto de sobrevivência: quero acabar, sair, e nunca mais cá por os pés!
Dezasseis anos depois regresso ao mesmo local. A sala está engalanada para a celebração dos 60 anos do Liceu. Por qualquer equívoco fui incluído num grupo restrito de ex-alunos a quem foi pedido que contassem histórias de outros tempos. Senti-me como uma raposa a quem pediram para guardar as galinhas. À minha frente tenho os professores a quem fazia a vida negra e os alunos que agora o fazem por mim. Vacilo entre a vontade de ser fiel aos acontecimentos e a necessidade de branqueamento do passado. Coragem! Já passaste aqui um exame!

segunda-feira, 18 de dezembro de 2006

Mensagem numa garrafa

Voltei episodicamente ao defeito antigo de pensar demasiado nas coisas, de complicar o que é simples. O passado é como uma caixa de surpresas, que se fecha com o esquecimento e que depois de fechada não sabemos o que guardamos lá dentro. Ocasionalmente um amigo ou uma foto entreabrem essa caixa, e por uma fresta fina podemos puxar as recordações, presas umas às outras por um fio invisível. O passado foi vivido por nós, é suposto sabermos como foi, mas às vazes ele surpreende-nos trazendo na linha recordações inesperadas. É incrível quanto de nós hoje se alicerça no passado. Agora chega! Volto a fechar a caixa; corto o fio deste blog. Vou deixa-lo morto e à deriva, como uma mensagem numa garrafa na vastidão do mar; vou deixa-la ir, ao sabor das ondas, não fazendo conjecturas sobre o seu futuro. Será encontrada e aberta? Pouco importa.

sábado, 16 de dezembro de 2006

Adultos prematuros

Esta foto sempre me perturbou. É de uma moça jovem mas que parece adulta. Parece cheia de tristeza e resignação. Também o olhar do fotógrafo é pesado no momento em que a imagem é capturada. (Para criar o fundo colei na parede folhas da necrologia do jornal.)Olhar para esta foto agora faz-me pensar que alguns de nós, com tanta ânsia de crescer, fomos adultos prematuros; passámos de adolescentes a adultos saltando por cima da juventude.

quinta-feira, 14 de dezembro de 2006

Rebeldia

É bom viajar, mas na juventude era muito melhor, era rebeldia! Partíamos sem rumo. Quando estávamos fartos de um sítio íamos à estação e pedíamos um bilhete para o primeiro comboio (não importava para onde). Se o dinheiro não chegava para o bilhete íamos à boleia. Cada dia uma nova terra, uma nova pensão mas sempre a mesma vontade de não parar.
Quando a roupa estava suja ou o dinheiro acabava voltávamos para o aconchego da casa dos pais, rotos, esfomeados e com vontade de partir.

terça-feira, 5 de dezembro de 2006

Tripla recordação

No meio de fotos inteiras, tenho umas quantas rasgadas. São pedaços do passado, que num passado mais recente, quis despedaçar. Representam fases que por um motivo qualquer me envergonhei e quis negar. Foi, é certo, uma negação simbólica (para que rasgar?) e pouco veemente (porquê guardar?).
Tê-las rasgado e guardado traz um valor acrescentado, cria uma sobreposição de recordações: o momento da foto e o da sua recusa. Tirá-las da caixa, juntar os pedaços e escrever sobre eles, retêm para o futuro um novo momento, uma terceira camada de recordação que se deposita sobre as anteriores.

segunda-feira, 4 de dezembro de 2006

Vestígios arqueológicos

Na caixa de recordações encontro por vezes coisas estranhas e divertidas: um disco de telefone, um compasso com tira-linhas, uma pega de metro das antigas. São objectos do dia-a-dia que já não fazem parte dos nossos dias, vestígios arqueológicos de um passado quase presente, demonstrações inequívocas da aceleração da história. São pensamentos a mais agarrados a coisas tão simples. É melhor fecha-las na caixa.(Ainda se lembram daquelas carruagens de metro vermelho e bege, com bancos de napa azul e frisos em madeira?)

quinta-feira, 30 de novembro de 2006

Bons velhos tempos

Não sou saudosista, recuso olhar com nostalgia para os anos loucos da juventude. O presente trouxe prazeres que nunca tinha imaginado: os planos em comum, inventar um novo lar, o sorriso dos filhos... Sinto falta apenas da liberdade, aquela enorme liberdade própria da inconsequência, própria de quem ainda não tem que se ralar com o dia seguinte. Sinto falta de fazer aquilo que bem me apetece, sem ligar a nada, apenas porque apetece.
Será que podemos ir trabalhar de cabelo rapado ou com uma crista de gel?

Foi bom, foi muito bom

Passámos 18 anos sem nos ver-mos e agora trocamos emails quase diariamente, numa euforia adolescente. No éter informático recorto e colo algumas frases soltas:
Foi o acontecimento mais marcante e surpreendente deste ano.
Adorei estar convosco a reviver e recordar tempos passados.
Foi bom, foi muito bom.
Mesmo descontando eventuais excessos de linguagem, o que sobra parece excessivo, próximo da loucura colectiva.
Serão as nossas vidas tão vazias que basta um jantar de amigos para enchê-las? Ou o que foi marcante não foi o jantar em si mas o retomar de amizades suspensas no tempo?

quarta-feira, 29 de novembro de 2006

Estado de alma

Um amigo no café, com um sorriso límpido, transparente, próprio de quem tem o mundo e todo o tempo do mundo pela frente. Uma fotografia de um estado de alma, que transborda de alegria juvenil. Onde é que está esse sorriso agora?

terça-feira, 28 de novembro de 2006

Má memória

Passou-me pela mão uma fotografia de um corredor da escola, vazio e escuro. Por qualquer motivo, a foto pareceu-me repulsiva; uma impressão ligeira, mas com sabor a náusea. Escondi-a numa gaveta da secretária, longe dos olhos mas à vista do pensamento.
Passaram-se alguns dias. Não racionalizo, mas sem querer iracionalizo. Uma lembrança assoma finalmente à superfície da memória, como um destroço que estivesse afundado. Revivo a experiência como se se passasse agora: cheguei mais atrasado do que devia e vou levar na cabeça. Ou então: fui expulso e já levei na cabeça. Tiro a foto da gaveta e olho de novo para ela: não há motivo para medos, já acabei a escola, não me podem chumbar por faltas.

segunda-feira, 27 de novembro de 2006

TEPR/TD

TEPR/TD. Podia ser o nome de um partido revolucionário pós 25 de Abril, que nessa altura ainda abundavam, mas não. Eram as abreviaturas das disciplinas de "Técnicas de Expressão e Práticas Reprodutórias" e de "Teoria do Design"; as disciplinas que nos davam um "status" especial e que faziam da nossa turma a "turma de artes".
Não era um partido, mas para nós tinha um "cheirinho" de revolucionário. Tínhamos mais liberdade do que em qualquer outra disciplina; podíamos nos levantar, passear pela sala e conversar com os colegas. Os professores tinham um trato informal e até se juntavam a nós nos frequentes jantares de turma. As salas eram grandes e tinham um ar desarrumado, que quebrava a ideia de massificação do ensino. No papel fazíamos o que quiséssemos; dávamos asas à imaginação e ao sonho de sermos artistas.